sábado, 30 de março de 2013

Palavras com Portugueses...

Foi a criança que a fez despertar do coma profundo em que estava mergulhada, absorta no livro ou nos seus pensamentos, não consegui adivinhar... Até aí era um espectro daquele espaço iluminado e branco de luz, vim a saber mais tarde que passava ali as tardes, dizia que em casa de tarde não batia o sol, que a casa ficava escura, então ia até ali ler um pouco e conversar com as pessoas.
- Sabe, na rua eu não meto conversa com estranhos, mas aqui, aqui, sinto que não faz mal e eu gosto de falar com as pessoas, gosto muito dos portugueses... Só quem nunca saiu de Portugal é que não percebe o valor que temos, somos um povo muito bom, eu gosto muito dos portugueses - repetia-me ela. 
Eu limitei-me a sorrir e nesse momento, fiquei disponível para ouvi-la...
Mas foi a criança que a fez acordar, como um raio, entrou pela sala a correr, era uma menina com cerca de um ano e meio, não devia ter mais e corria como as crianças daquela idade correm, sorria para nós e agarrava nos papéis espalhados em cima da mesa e mandava-os ao chão, a mãe apressava-se a arrumar a confusão e nós sorríamos, como se sorri para as crianças... 
Ela, levantou-se do seu lugar de braços estendidos em direcção à menina e pediu, - Posso pegar-lhe ao colo, tenho tantas saudades, os meus netos já são crescidos, tenho saudades, estou à espera do nascimento de uma bisneta, tenho saudades de quando eram pequenos e lhes pegava ao colo... Posso? - Insistiu. Os pais da menina entreolharam-se, encolheram os ombros e disseram que sim, esboçaram um sorriso tímido de quem talvez quisesse dizer que não, mas que perante a situação não foi capaz. A menina corria e queria tudo menos ser pegada ao colo... Ela voltou a tentar e depois de lhe dizermos, - É  uma criança sabe, eles às vezes só querem mesmo é correr e fazer gracinhas, não gostam que as agarremos... - Ela concordou e lá desistiu. Sentou-se ao meu lado e continuou a contar-me a sua história, contou-me que era das primeiras arquitectas portuguesas, nasceu numa família do Norte muito numerosa e abastada, eram 11 irmãos e todos se formaram, naquele tempo não era comum, o ensino estava vedado aos que podiam... Eu fui professora muitos anos aqui no liceu ao lado, houve uma época antes do 25 de Abril que o meu marido estava a ser perseguido pela Pide, ele também era arquitecto e um dia disse-me que tínhamos de sair de Portugal, viajámos para o Canadá, eu era muito jovem tive de me separar de dois dos meus filhos, não podia levá-los comigo... O que me custou aquela separação, ninguém faz ideia... Chorava todas as noites, chorava muito, foi muito difícil... As mulheres ainda não tinham a liberdade que há hoje, eram outros tempos...
No Canadá, consegui emprego como professora, no primeiro dia de aulas confundiram-me com uma aluna, eu tinha uma figura bonita, era alta e magra, tinha cabelo loiro comprido e parecia uma miúda,  demorei ainda algum tempo a fazê-los entender que era a nova professora de Geometria Descritiva, foi muito engraçado. - Mas eu gosto mesmo muito dos portugueses, só quando deixamos o nosso país, percebemos o valor das pessoas, - O Canadá é um bom país para se viver, mas as pessoas, não são como nós... Houve um episódio no metro que jamais esqueci, continuou - Uma senhora caiu para a linha do metro, ou atirou-se, não sei e não a vou julgar, pois só ela e Deus sabem o que aconteceu, mas estava eu a contar, - hesitou como se tentasse recordar os pormenores, e prosseguiu - Houve este episódio e ninguém fez nada, eu fiquei transtornada e chamei alguém da estação para relatar o que tinha acontecido, mas todos os que estavam perto de mim e tinham assistido continuaram como se nada fosse, entraram no metro quando as portas se abriram e nem hesitaram, eu não consegui... O responsável da estação a quem me dirigi indignadíssima, disse que eu não devia reagir assim e que as autoridades até podiam pensar que a tinha empurrado... Fiquei incrédula a olhar para ele... Nós não somos assim, somos mais humanos, a menina imagina isto a acontecer em Portugal e as pessoas a reagirem desta forma? Não... O nosso povo não é assim, insensível... O meu marido faleceu pouco tempo depois e eu regressei imediatamente ao meu país, não podia continuar a viver ali... Não imagina a emoção que senti quando estava a chegar a casa, que alegria, estava de novo no meu querido país. Por isso gosto tanto do nosso povo... 
Levantou-se de novo com os braços estendidos em direcção à criança, - Posso pegar ao colo, posso? Os meus netos já são crescidos, estou à espera de uma bisneta, tenho tantas saudades deles pequeninos e de lhes pegar ao colo - repetiu.
Eu ouvi mais duas ou três vezes as histórias que me contava, repetia-as e eu tentava reagir como se as ouvisse pela primeira vez, enquanto aguardava que chegasse a minha vez de ser atendida. Tinha pensado sair por momentos para comer qualquer coisa, pois não tinha almoçado e tinha tempo para o fazer, mas não consegui sair e ignorá-la ou impedi-la de me contar a sua história.
Ao nosso lado tinha-se sentado um homem de negócios que adormeceu enquanto falávamos... Chegou a minha vez e despedi-me cordialmente, desejámos felicidades uma à outra. 
Olhei para trás e ainda a consegui ouvir, - Sabe, na rua eu não meto conversa com estranhos, mas aqui, aqui, sinto que não faz mal e eu gosto de falar com as pessoas, gosto muito dos portugueses... - repetia ela para o homem de negócios que agora estava acordado e tentava dar-lhe atenção... 
Afastei-me a sorrir, sim, os portugueses são boas pessoas...